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O Estrogonofe dos Estroganovs


Um certo dia, em Lima, no Peru, vi um potinho com arroz doce e cometi a burrice de comentar: Ah, que legal, vocês comem arroz doce aqui também! Isso é brasileiro! – indignação geral na mesa e a resposta: como assim, brasileiro? O “arroz con leche” é peruano! Como eu já tinha passado vergonha antes por brigar pelos direitos autorais da música “À Sua Maneira”, que eu jurava ser do Capital Inicial e terminei descobrindo que a que eu conhecia era só uma versão da original argentina, decidi levar o assunto de uma maneira um pouco mais leve. Diplomaticamente, chegamos à conclusão que o arroz doce deve ter sido uma tradição da Península Ibérica que foi levada ao mundo por portugueses e espanhóis. Melhor assim, né? Qualquer dia eu faço uma pesquisinha melhor sobre o arroz doce! O fato é que, a partir de então, comecei a duvidar da origem de quase tudo o que comemos no Brasil, exceto da feijoada, do brigadeiro e do pão-de-queijo!


Comecei a pensar, então, sobre nossas tradições culinárias e como elas refletem a característica que considero a mais fundamental do nosso país: a pluralidade que se transformou em nação. Você já parou pra pensar que, apesar de seus pais, avós, bisavós, tataravós, etc terem sido de origem portuguesa, africana, indígena, espanhola, italiana, alemã, japonesa, libanesa, entre tantas outras, você é plenamente brasileiro? O que você acha de uma pizza com sorvete, creme de chocolate e moranguinhos por cima? Normal? Uma delícia? Para um napolitano, é uma aberração, uma infração, um escândalo... tudo, menos pizza! Rodízio de sushi, então, é para levar qualquer japonês à loucura, não metaforicamente.


E o estrogonofe? Já tinha parado pra pensar que, por mais que você tenha comido durante toda sua infância (acompanhando com guaraná), com esse nome quase impronunciável no português, não é um prato brasileiro de jeito nenhum? O que será que os russos acham da nossa iguaria, com ketchup e batata palha?


Igreja de Nosso Senhor do Sangue Derramado, São Petersburgo

Nas últimas férias, decidimos viajar para São Petersburgo. Cheguei na Rússia com apenas um desejo: o de comer um “quase verdadeiro” “strogonoff” russo! Impossível ter a pretensão do verdadeiro porque a história do estrogonofe é praticamente uma lenda que se perde entre muitas versões. Segundo a Enciclopédia Britânica e vários sites que se dedicam a pesquisar a história da gastronomia, (fui pesquisadora em uma universidade, não existe Wikipedia no meu computador, pode confiar!) o que existiu, de fato, foi a família Stroganov, muito afluente, de grande importância para a economia e para a história da Rússia, já que se dedicava muito às artes e à filantropia. Chegaram a construir escolas, igrejas e até uma corrente artística de pintura dos famosos ícones russos foi batizada com o nome da família.


Seguindo a tendência mundial do século XVIII, que era assimilar a grande influência cultural que a França exercia naquele momento, essa família contratou um chef francês, Charles Brière, para cuidar da alimentação da casa. Esse chef, supostamente, participou de um concurso de gastronomia e ganhou com essa receita de carne cortada em tirinhas, cogumelos e creme. O nome estrogonofe seria uma homenagem aos Stroganovs. Existem outras versões, como a de que o chef criou essa receita de carne cortada em titinhas porque, como, na época, os cuidados com os dentes não eram lá grande coisa, os membros mais idosos da família e também os convidados tinham dificuldade de mastigar a carne inteira. Melhor cortar então, né?


Seja qual for a história verdadeira, o fato é que comi um prato sensacional em uma cidade deslumbrante. Esqueça do ketchup, da batata palha e até do creme-de leite. Pra falar a verdade, acho que o que eles utilizam mesmo é o creme ágrio, o “sour cream”, que nem é muito conhecido no Brasil, mas está presente na maioria dos pratos que se come por lá. Também não senti sabor de mostarda, que muitos brasileiros acabam usando no estrogonofe.


Para ser honesta, comi tanta comida boa na Rússia, que meu desejo único inicial do estrogonofe acabou se transformando em um “doce martírio” para o meu marido: eu queria provar tudo! Fiquei deslumbrada com o bolo de mel (umas dez camadas de bolo fino e fofinho intercaladas com um creme branco – de novo, o “sour-cream” – misturado com mel); fiz questão de tomar a sopa de beterraba, a “borscht” (com uma bola de “sour cream”, para variar, no centro) e até por erro do garçom, acabamos comendo um doce folhado chamado Torta Napoleão (adivinhe o motivo do nome...)


Voltei pra casa e, como boa brasileira, já fiz a minha versão do estrogonofe, com ingredientes italianos (onde moro atualmente) do que comi por lá – percebe o que aconteceu conosco nesses quinhentos e tantos anos? Saiu bem parecido: dourei o alho em azeite, em seguida adicionei funghi porcini, a carne, cortada em tirinhas, com sal e pimenta e flambei com vodka, claro! Por último, coloquei o creme-de-leite. Na próxima vez que fizer, vou colocar o “sour cream” pra ver o que acontece! As opções de acompanhamento no restaurante em São Petersburgo eram purê de batata ou batata frita. Em casa, também; gostei mais dessa combinação que o nosso bom e velho arroz branco com batata palha! Desta vez, não consegui descobrir o que os russos pensam sobre o nosso estrogonofe; me dediquei mesmo a me deliciar com o estrogonofe deles!


Acredito que essa viagem à Rússia tenha significado mais que umas ótimas férias; me fez pensar, sobretudo, no legado que deixarei à minha filha. Ela nunca morou no Brasil, mas fala português, come arroz com feijão, pão-de-queijo e brigadeiro; adora ver vídeos sobre festa junina e os desenhinhos da Turma da Mônica. Por outro lado, ela também é filha de um peruano; fala espanhol e come todas as delícias da gastronomia desse país andino. Ela é mistura de mistura morando na Itália, de onde parte da mistura genética que faz parte dela saiu e da qual ela herdou apenas o sobrenome e a paixão pela pizza – original, margherita, tricolor, ultra-italiana! – por mais que ela venha a adquirir a cidadania italiana no futuro, da qual ela legalmente tem direito, duvido que ela se considere mais italiana que brasileira e peruana. Esse será então o nosso legado: a memória do lar e, sobretudo, do que colocamos à mesa.

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2 commentaires


robertaizzo
robertaizzo
13 sept. 2019

Muito obrigada!!! E Viva a Barra da Tijuca!!!:)

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rsfrsf55
12 sept. 2019

Show !! Gostei muito...comentando aqui do Rio de Janeiro, Barra da Tijuca...

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